Uma breve história
Já o sol se estendia pela planície quando Dona Berta surgiu majestosamente do meio da erva.
Hora do pequeno-almoço, uma das refeições mais importantes do dia, por isso á medida que caminhava pela estepe alentejana ia debicando os pequenos talos ainda verdes da vegetação.
Dona Berta, uma Senhora Abetarda, vivia feliz na planície: havia comida em abundância e tinha muitos amigos.
Sansão, o Sisão, outra ave que habita a planície e com quem mantinha longas conversas ao entardecer e Julião, um Peneireiro -das -torres que pertencia a família dos falcões e que só cá estava na época da primavera e do verão, depois de muitas horas de voo desde o continente africano, mas sempre a tempo para contar as novidades e pôr a conversa em dia.
O bando da Dona Berta era muito grande e organizado.
Viviam todos juntos, mas cada um tinha o seu lugar: havia o bando dos machos, o das fêmeas, o dos machos ainda jovens e o das fêmeas com as suas pequenas crias; este era o bando mais atarefado, já que as mães e filhotes andam sempre juntos durante um ano ou ate a cria conseguir viver de forma independente.
Os machos do bando estavam a preparar a dança nupcial: as suas penas de cor castanhas alaranjadas estavam mais luminosas e as asas e cauda pareciam bolas de neve, de tão redondas e brancas que ficavam nesta época tão especial. Juntavam-se num local da planície onde não houvesse nada que pudesse distrair as fêmeas, já que elas eram o protagonismo do baile. Aos poucos as fêmeas aproximavam-se e escolhiam o seu par – vá-se lá saber porque e como! Já que ao longe eram todos iguais. Talvez seja daqueles bigodes especiais que parecem usar!
Dona Berta acabara o seu pequeno-almoço; pelo caminho ainda tinha comido uns grãos, uns feijões e umas ervilhas. Tinha sido uma refeição bastante equilibrada com todos os nutrientes essenciais para começar bem o dia.
No seu caminhar lento, foi-se aproximando do local onde estavam os machos que dançavam com muita energia na esperança de cada um deles atrair a sua companheira.
E lá estava o papos, um macho enorme, pesava perto de 14 quilos!
O coração de Dona Berta bateu apressadamente: era ele quem seria o pai das suas crias.
Apurou os sentidos, esticou o seu longo pescoço e aos poucos aproximou-se de Papos que, ao vê-la, não resistiu e encheu ainda mais o peito, arredondou as asas e a cauda e os dois envolveram-se numa pequena dança.
Não muito longe dali estava o seu primo Sansão: também ele, inspirado pelos aromas desta estação florida, procurava uma namorada.
Já tinha mudado de roupa e as suas penas já não eram só pardas; agora tinha uma bela gravata á volta do pescoço, negra com uma barra branca: era a gravata da primavera! Estava vestido a rigor para iniciar a corte a sua amada.
Agora só faltava subir ao palco e fazer o grande número de sapateado que ira atrair a mãe dos seus futuros filhotes.
Não demorou muito tempo e eis que surge á sua frente Margarida, aquela a quem ele tinha assobiado durante o seu vou. Olharam-se ternamente e Margarida aproximou-se ainda mais; queria ter a certeza que ele era o mesmo que ainda a pouco lhe assobiara.
Depois de uma tarde de muito namoro, Dona Berta e Margarida despediram-se dos seus pares e cada um por si procura local para fazer o ninho onde iriam colocar os seus ovos.
Escolheram um sítio com uma vegetação rasteira, mas com flores de muitos tons e aromas.
Sim, era importante: já que iam ficar cerca de um mês a chocar os ovos, queriam ter a volta muita comida num local agradável, até porque, mal os filhotes nascessem, começariam logo a andar ao lado das suas mães á procura de alimentos.
Antes de começar a fazer o ninho Dona Berta, olhou para a ruína da casa abandonada: será que Julião já tinha voltado?
Julião, e os outros machos do bando de Peneireiro -das torres, ao chegar á planície, precisavam de ver aquela casa abandonada servia para ninho.
Ao contrário da sua amiga Berta, Julião e os da sua espécie utilizavam as cavidades e buracos das estruturas construídas pelo homem, tais como casas ou torres das igrejas e castelos, para fazerem os ninhos. Alguns preferiam as escarpas de algumas falésias com uma vista fantástica! Mas nem sempre havia um local com boas condições e poucos perigos…
Felizmente muitos voluntários limpavam anualmente as paredes daquela casa, por isso aquele velho monte era perfeito!
Á sua volta existia uma grande extensão de trigo, rica em gafanhotos e grilos, por isso não iam ter problemas em alimentar todo o bando e as crias.
De alto de um poste Julião viu, lá longe, o bando que começava a ganhar forma. As fêmeas estavam a chegar e eram tantas… Agora era só afinar a voz e começar o canto – quiquiquiqui – tchak – tchak – tchak – os sons para atrair as fêmeas.
Julião sabia que quando encontrasse o seu par, juntos iriam chocar os ovos e ele só se afasta do ninho para procurara comida que dedicadamente colocaria junto da sua companheira.
Ao longe viu uma fêmea que lhe fez saltar o coração, foi amor a primeira vista…
Juliana baixou do seu vai e aterrou num poste no meio do prado cheio de pequenas flores, naquele que seria o lugar ideal para viver nos próximos meses.
Ajeitou as plumas acastanhadas, as pintas negras que tinha no dorso estavam brilhantes e lustrosas; era de facto uma ave muito bonita.
Quase dez metros acima de si estava Julião; tinha encontrado um grilo, seria o presente ideal para a sua conquista. Picou o vou e com grande agilidade apanhou o insecto.
Foi deposita-lo junto de Juliana. Depois de algumas horas de conversa com muito chilrear á mistura e após mais uns voos para procurar suculentas ofertas para a sua amada, Julião partiu para o ninho que tinha escolhido e juliana seguiu-o.
Já tinham passado quase três meses desde o inicio da Primavera.
Na planície já se avistavam os novos habitantes ; alguns ainda caminhavam perto dos pais, como era o caso da família da dona Berta e de Sansão.
Julião e Juliana tinham tido cinco filhotes mas ainda estavam todos no ninho da ruína.
O final da tarde na estepe alentejana era o melhor que todos podiam desejar: com as crias alimentadas e sossegadas, os pais podiam conversar a vontade com os outros animais.
Foi num dia assim que Dona Berta e Sansão se encontraram, tagarelaram da sua experiencia de serem pais, do tempo e da vida.
Foi então que a meio da conversa Dona Berta falou do seu amigo Julião; afinal não o viam desde o ano anterior. Será que também ele já tinha família?
Chamaram a joaninha: era ela que andava sempre de um lado para outro a levar os recados e o correio dos animais da planície e pediram-lhe para ir ter com Julião. Queriam convida-lo para tomar um chá.
Quando joaninha regressou com a resposta, Dona Berta disse.
- Se ele não poder vir ter connosco por ter os filhotes no ninho, não faz mal; vamos nos ter com ele e levamos as nossas crias, todos juntos passamos uma excelente tarde.
Assim foi: Sansão e Dona Berta no dia seguinte, logo pela manhã juntaram a família e partiram. O caminho até ao monte era longo; foram parando e conversando com outros animais, nem queriam acreditar no que ouviam.
Então a plantação de trigo ia desaparecer? E aquelas bonitas pastagens floridas também? Pelos vistos o homem estava a estudar um plano para colocar na planície um grande olival e também uma grande floresta. “Já não chegavam os campos agrícolas agora não descansarem como deviam”…queixava-se Dona Berta. “É verdade” dizia Sansão, na época do meu avô, o homem deixava sempre um grande terreno sem ser cultivado, ao fim de uns tempos tínhamos nova vegetação e novos insectos, isso sim, nesse tempo era bem mais fácil ter comida sempre por perto.
Isso era uma má notícia, o que é que iria acontecer as aves que ali viviam há tantos anos? Gerações e gerações de animais da planície estavam agora ameaçadas.
Fizeram o resto do caminho, até a ruína, em silêncio; as crias andavam numa roda-viva, sempre a brincar e a apanhar pequenos insectos, um gafanhoto aqui, um grilo ali, sem se aperceberem que o seu futuro podia estar ameaçado.
Á volta do chá os amigos trocaram novidades: Julião e juliana falaram do continente africano, local para onde voltariam em breve. Dona Berta e Sansão contaram tudo o que tinham ouvido acerca das intenções do homem em modificar os campos onde os familiares viviam a tantos anos.
Embora a companhia dos amigos fosse importante, havia alguma tristeza no ar: ter de deixar o local onde vivemos e não ter alternativa era muito desolador.
Foi então que Joaninha ao voar junto deles, ouviu a conversa e disse: “ amigos não estejam assim tão tristes, eu sei que vão existir muitas alterações por aqui, mas também sei que neste mesmo local, onde agora estamos, vai ser criada uma reserva para as aves da planície. Vão deixar as terras tal como estão, só com a vegetação florida que aqui cresce; a casa abandonada também vai ficar, e mais: não vão existir postes de electricidade por perto, os cabos eléctricos vão passar para o outro lado da reserva”.
A alegria dos amigos era tão grande, todos juntos fizeram um brinde: afinal sempre que existia uma má noticia, mais cedo ou mais tarde, aparecia sempre uma boa nova. Assim, como que a equilibrar a natureza.
Já o sol começava a descer para o jantar e a mostrar os seus grandes dedos vermelhos, quando as famílias de Dona Berta e Sansão regressaram a casa. Tinha sido um dia repleto de emoções, agora só queriam descansar. Amanhã teriam de reunir todo o bando de Abetardas e Sisões e contar a novidade.
No dia seguinte, a comunidade sénior das aves da planície deliberou a melhor forma de todos usufruírem desta que seria a sua renova casa.
Dois verões depois…
…Tudo estava tal e qual a joaninha tinha anunciado:
Uma grande área da planície estava protegida, havia muitas áreas sem vedações; no entanto, nos locais onde havia vedação, esta estava suficientemente alta para as Abetardas poderem passar: era só baixar o pescoço e lá iam elas para lá e para cá. Os pastos continuavam a existir e nas encostas aqui e ali existiam também pequenas elevações, que pareciam palcos, onde os Sisões podiam continuar a fazer o seu sapateado do namoro, na época de acasalamento.
A casa já tinha agora um ar menos abandonada: algumas obras tinham sido feitas por voluntários no sentido de recuperar as frágeis paredes e uma nova torre tinha sido construída. Nova, mas já devidamente esburacada – e assim as famílias de Peneireiros-das-torres , continuaram a viajar todos os anos desde o continente africano até a planície alentejana. E até havia pequenos bebedouros espalhados em vários locais: era inteligente este homem novo, guardava a água das chuvas de inverno e no verão, através de um pequeno sistema, essa água aparecia em lagos miniaturas. E no meio das searas e pastos, onde a comida abundava, surgia aqui e ali uma ou outra charca onde também se podia ir beber um pouco de água para refrescar nesses dias quentes de verão. Também varias árvores tinham sido ali deixadas, algumas azinheiras e oliveiras, que ofereciam uma bela sombra e alimento.
Todos perceberam que o mais importante era esta partilha e o respeito pelo espaço de cada um. Afinal a mudança não tem de ser uma coisa má.
FIM